sexta-feira, 5 de abril de 2019

Latifúndio da cultura e a indústria cultural da seca.



Construtores e mantenedores de uma identidade cultural perversa com apologia ao imobilismo diante do subdesenvolvimento e discurso acrítico diante da realidade social desamparada de maior parte da nação nordestina. Glamourização da ignorância e da miséria humana, leitura perversa do mito do “bom selvagem”.

No campo da cultura, certos grupos de setores letrados de classe média querem apropriar-se desses bens culturais criados pelo povo, falam por esse, auto denominam-se guardiões dessa cultura, instituindo,no dizer de Michel Zaidan, um verdadeiro mandarinato auto instituído, passando a ditar cânones estéticos, vetando o diálogo entre outras expressões, e desqualificando todos os que não se enquadram nos seus feudos culturais por não terem vínculos consangüíneos, por estarem situados em outros espaços geográficos além e alheios, querem manter essa pretensa propriedade desses bens dentro das cercas do seu latifúndio da cultura. “Propriedade exclusiva” de herdeiros dos bens imateriais ancestrais, fundando e mantendo seus guetos, com tudo de pernicioso que essa forma relacional traz em si. Auto referentes, criam uma espécie de etnocentrismo travestido de resistência cultural, já que não fomentam o desenvolvimento da cultura que propagam além dos seus pretensos domínios.

No plano ideológico, majoritariamente não criticam o modelo agrário excludente, mostram o homem do povo como um “coitadinho”, vítima apenas das inclemências climáticas, debitando a essas a razão da miséria dominante, choram a seca e não criticam a cerca latifundiária, entidade com a qual parecem manter um armistício e conivência. No plano político, legitimam o modelo que só interessa a oligarquias atrasadas, que vivem de currais eleitorais, não trabalham para superar o atraso que glamourizam nas peças de bens culturais que criam. Reproduzem estereótipos construídos e reforçados pela mídia massificadora, uma forma de conformismo e imobilismo diante de um destino traçado contra o qual nada há o que fazer. Imobilidade e manutenção do status quo de modelo social excludente, já que se abstrai a crítica do processo histórico que criou essa sociedade de referência, que mostram como modelo único e absoluto de identidade cultural.

Além disso, querem propor uma inútil separação entre o rural e o urbano que em nada contribui no diálogo entre as diversas expressões culturais de um país sincrético em que os valores culturais sempre interagiram e auto influenciaram ao cabo desses mais de 500 anos de civilização. O samba,por exemplo, hoje música urbana, tem suas raízes nordestinas e rurais na Bahia, transplantado para o Rio de Janeiro na migração e ex-escravos que entoavam inicialmente melodias de toadas de violeiros que eram os primeiros temas sonoros dessa eloqüente expressão musical brasileira, que evoluiu para a ópera popular dos majestosos desfiles das escolas de samba. Além disso, o samba ritmicamente simplificado e temperado com acordes de jazz, deu na bossa nova, um dos mais refinados produtos musicais brasileiros, que colocou nossa música no patamar da melhor música popular ocidental, bem além dos domínios do meramente “folclórico”, como nossa coisas culturais eram normalmente vistas pelos povos dominantes do pós segunda guerra mundial.

Latifúndio tem de terra
É base de uma opressão
Mas tem a outra versão
Que muita gente desterra
E quem assim se aferra
Age de forma obscura
Tolhendo coisa futura
Fazendo mesmos papéis
Dos da terra coronéis
Latifúndios da cultura

Toda expressão popular
Atravessou as fronteiras
Não se prende por porteiras
Nasceu pra multiplicar
E ao mundo impregnar
Essa é sua procura
Quem pretende não a mura
Nem lhe põe em pano preto
Pois quer faze-la de gueto
Latifúndios da cultura

Salve o Brasil do plural
Brasil da diversidade
Construir nova verdade
Sem ranço senhorial
De herança colonial
Sepultar a impostura
Mandar para a sepultura
As vozes da arrogância
Arautos da intolerância
Latifúndios da cultura

A cultura desse povo
Não é sua fazendola
Em todo canto que rola
Respirando ar bem novo
É semente sempre ovo
A brotar com compostura
Que cultiva com ternura
É dela seu defensor
E sem aval do senhor
Latifúndios da cultura

Quem é dono da patente
De fazer uma sextilha?
O dono da septilha?
Do galope, que é gente?
Escritura e o escrevente
Quem é dono? Que tronchura
Estupidez não tem cura
Isso pertence ao Brasil
Vão pra puta que os pariu
Latifúndios da cultura.