Em
14 de outubro de 2001, um final de domingo eu estava completamente bêbado
depois de uma garrafa de cachaça que havia ingerido na tarde. Separado e pai de
dois meninos que passavam fim de semana comigo e que testemunhavam minhas
constantes e contumazes bebedeiras que sempre extrapolavam o que se chama de
“beber socialmente”. Minha irmã mais velha me chama pra uma conversa e fala
daquela coisa deprimente dos meninos sempre verem o pai deles passando da conta
na bebida. Era mais um dos muitos sermões que o povo de casa costumava dar, na
vã tentativa de me afastar dos excessos com o álcool.
Desta vez ela me oferece uma consulta com um
psiquiatra especializado em dependência química, o qual tinha feito com sucesso
o tratamento de um colega de trabalho dela vítima do alcoolismo. Eu relutei,
mas, na terça feira seguinte, lá estava eu em companhia do Dr. Jorge Arruda
para a consulta que minha irmã agendou e pagou. Ele, com muito tato, fez
perguntas acerca da minha relação com o álcool, coisas como a quantidade que
ingeria, a modalidade de álcool, a freqüências dos pileques, as motivações para
beber, a existência de parentes alcoólatras, o tipo de ambiente social em que
eu vivia, etc. O médico atestou meu perfil de compulsivo, não era um julgamento
moral, mas uma constatação do meu psiquismo que determinava esse comportamento
anômalo de beber desbragadamente, fora de controle, com todos os comportamentos
anti sociais que os pinguços em geral apresentam. Falou que o que determinava
esse quadro clínico era uma conjunção de fatores genéticos, comportamentais e
sócio culturais, já que a herança genética favorecia mas não determinava que
alguém se tornasse alcoólatra.
Eu
sou filho e neto de alcoólatras, fui educado em ambiente em que o ato de
ingerir bebidas alcoólicas era reforçado pelo grupo de referência, como
afirmação da sociabilidade e a masculinidade do sujeito. De fato, aluno de
escola militar desde os 12 anos, passando mais um ano no CPOR do Recife, meus
pares sempre bebiam pra comemorar fosse lá o que houvesse: festas, torneios
esportivos, etc. Aprendi a beber com cerca de 17 anos, no ano em que ganhei o
torneio de xadrez dos jogos escolares, foi meu primeiro pileque, cheguei em
casa com a medalha de ouro, o troféu e de cara cheia. Depois disso, num
crescente, passei a viver como boêmio, minhas vivências musicais favoreceram a
presença do álcool em minha vida. Dos 25 anos em diante, tenho certeza que
passei a ingerir bebida alcoólica bem além dos limites do beber socialmente.
O
médico deu-me duas opções: continuar bebendo e adquirir alguma doença associada
ao consumo excessivo e morrer disso, ou redimensionar minha vida, afastando
completa e totalmente o álcool de minha vida. O ser humano com perfil de
compulsivo quando deixa de consumir seu objeto de compulsão, seja lá qual
droga, não consegue segurar o impulso de consumir, uma vez consumindo, toda a
compulsão volta e a pessoa não mais controla esse impulso e volta com toda
carga. Ou seja, não existe essa de deixar por um tempo, consumir menos,
compulsivo simplesmente não controla sua vontade uma vez consumindo álcool. É
verdadeira aquela história de evitar o famoso primeiro gole, nosso cérebro
funciona como um livro aberto no qual nós escrevemos nele. Quando paramos de
beber o livro é fechado, podemos passar anos a fio sem beber, uma vez ingerido
o primeiro gole, o livro é reaberto na página em que foi fechado e a história
continua de onde tinha parado como se não houvesse nenhum lapso de tempo.
Passei a tomar medicamentos que ajudavam a tirar a compulsão e que redimensionavam
o funcionamento do metabolismo basal do sistema nervoso.
Duas
drogas de tarja preta e muito fortes, que passaram a me deixar em marcha lenta,
sonolento por algum tempo. Eu tocava num boteco no centro do Recife e passei a
me apresentar neste ambiente boêmio tomando água mineral e refrigerantes, não
deixei de andar nos bares do Recife Antigo para onde me dirigia com freqüência,
em companhia dos meus amigos que sempre bebem bastante. Ou seja, não me isolei
como eremita dos ambientes boêmios, enfrentei o desejo de beber de frente, não
mudei de ambiente social, enfrentei o leão dentro da sua jaula. Causei variadas
reações nos antigos parceiros de bebida, alguns ficaram indiferentes, outros
fazendo chacota. Um outro grupo querendo me trazer de volta ao vício na crença
de que eu (e eles também) não éramos doentes, e que nada havia demais em tomar
uma cervejinha. Fui até ofendido por um deles metido a profeta e sábio que me
disse literalmente: “ ..Allan Sales, vocês está perdendo o seu caráter..” um trapo
humano que é escravo até hoje do álcool e que me dizia que não concebia sua
vida sem o álcool.
A
maior luta pra mim não foi a falta da bebida em si, porém todo ritual em torno
do álcool, a maioria de meus contatos sociais é de pessoas que bebem em variados
graus, fiquei como peixe fora d’água inicialmente, aos poucos fui readaptando
minha presença no meio social que nunca abandonei por conta da abstinência. Hoje
acordo bem mais cedo do que em tempos em vivia entre dois estados de
consciência: bêbado e de ressaca. Tenho outra disposição física e mental,
embora muitos “artistas” me perguntem como é que eu consigo compor música e
escrever poesia sem nenhum “estímulo”, assim como eu consigo curtir os eventos
sem o auxílio externo de algum “estimulante”. Sem moralismos baratos e sem
nenhuma conversão religiosa fajuta, vivo assim fora do vício e conto cada ano
mês e dia de cara limpa: 5 anos, dois meses e 23 dias sem beber. Acho que essa
experiência de vida e esse testemunho algo que pode vir a ajudar alguém que
esteja hoje no mesmo inferno em que vivi por 21 anos de minha vida.
CORDEL: CONSTRUINDO OUTRO
DESTINO
Autor:
Allan Sales
(1)
Vou
contar uma história
Cem
por cento verdadeira
Eu
então jovem mancebo
De
juventude fagueira
Iniciei
meu tormento
Pois
neste triste momento
Eu
entrei na bebedeira
(2)
Era
só por brincadeira
Dos
amigos camaradas
Eu
tocava violão
Para
animar as noitadas
Eram
alegres pelejas
Vinhos
conhaques cervejas
Nas
farras tão animadas
(3)
Eram
tantas as paradas
E
ali bem postado
Pois
só sabia curtir
Se
estivesse embriagado
Tal
como meu pai bebia
Na
mesma estrada eu ia
A
tornar-me um viciado
(4)
Sem
perceber-me logrado
Embarquei
nesta canoa
Era
alegre a boemia
Conhecer
tanta pessoa
Encher
a cara por nada
Curtir
a turma animada
Para
mim ô coisa tão boa
(5)
Mas
eu ficava à toa
Fazendo
minhas besteiras
Pois
o bebum perde o rumo
E
também as estribeiras
Discute
e compra briga
Pois
o álcool o instiga
A
fazer tantas bobeiras
(6)
E
nas farras corriqueiras
Sem
saber-me compulsivo
Geneticamente
propenso
A
um vício corrosivo
Fui
beber além da conta
A
cuca pra lá de tonta
Ficava
brabo e explosivo
Hoje
isso eu não vivo
Procurei
um tratamento
Aos
41 de idade
E
vinte de sofrimento
Minha
irmã me apoiou
Meu
filho me implorou
Deixar
o vício nojento
(8)
E
assim neste intento
Fui
falar com o doutor
Jorge
meu psiquiatra
Que
foi esclarecedor
Mostrou-me
o quadro real
Deste
vício bestial
Tormento
de um bebedor
(9)
Meu
pai foi um sofredor
Por
causa do alcoolismo
Assim
como avô paterno
Caiu
também neste abismo
Que
altera a consciência
Provoca
queda e demência
E
falo sem moralismo
(10)
Beber
afirma o machismo
É
um ato cultural
Mostrar
que é cabra macho
Eu
fui assim afinal
Com
genética herança
Fui
fundo nesta lambança
Mas
nela pus um final
(11)
A
luta foi crucial
Por
causa do ambiente
Altamente
permissivo
Aonde
eu era vivente
Amigos
todos farristas
Biriteiros
ativistas
Cachaceiros
no batente
(12)
Mesmo
assim fui em frente
Da
parada não corri
Rompendo
com o passado
Que
até então eu vivi
Tomar
um outra atitude
Cuidar
melhor da saúde
Opção
que escolhi
(13)
E
assim como parti
Em
busca de uma mudança
Muita
gente me tentou
Chamou
de volta pra dança
Oferecendo
bebida
Desgraça
da minha vida
Que
hoje não me alcança
(14)
A
luta nunca se cansa
É
permanente e diária
Ser
sóbrio a cada dia
Numa
luta temerária
Muita
gente faz chacota
Muitos
chegam com lorota
Incredulidade
vária
(15)
A
coragem necessária
Até
hoje eu a tenho
Vejo
a alegria dos filhos
Vendo
meu sóbrio empenho
Melhorei
a minha vida
Que
hoje melhor é vivida
Com
um melhor desempenho
(16)
Outro
caminho eu desenho
Mas
permaneço atento
Pois
as tentações do mundo
Tem
variado fomento
Ainda
estou nas noitadas
Violas
enluaradas
Meu
ofício por intento
(17)
Permanecendo
atento
Vigilante
a cada dia
Consciente
que o vício
Fez
minha vida vazia
Hoje
traço outro caminho
A
poesia e meu pinho
São
a minha companhia
(18)
Faço
outra cantoria
O
novo eu determino
Prosseguindo
firme e forte
O
que aprendi ensino
A
bebida pus de lado
Sóbrio
não embriagado
Construindo
outro destino
Allan
Sales, 56 anos: 15 anos, dois meses e 24 dias sem beber